domingo, 25 de outubro de 2009

O grande rebu da maconha








uma noite destas fui a uma reunião - em geral, o tipo do troço chato pra mim. sou, essencialmente, um solitário, um velho beberrão que prefere beber sozinho, talvez com a única esperança de escutar um pouco de Mahler ou Stravínsky no rádio. mas lá estava eu no meio da turba enlouquecedora. não vou explicar o motivo, pois isso já é outra história, talvez mais longa, e mais confusa ainda, porém, ao ficar ali parado, tomando meu vinho, ouvindo o The Doors, os Beatles ou o Airplane, misturados com todo aquele vozerio, percebi que precisava de um cigarro. estava a zero. como sempre, aliás. aí vi aqueles 2 rapazes por perto, braços caídos e oscilando; os corpos frouxos, feito gansos; pescoços girando; os dedos das mãos à vontade - em suma, pareciam feitos de borracha, um elástico que se esticava, puxava e partia. cheguei perto:- ei, caras, um de vocês tem cigarro?
foi o que bastou pra borracha começar a saltar. fiquei ali parado, olhando, enquanto se entusiasmavam, estalando os dedos e batendo palmas.- aqui ninguém fuma, bicho! BICHO, a gente não ... fuma.- não, bicho, a gente não fuma, não desse tipo, não, bicho.flipflop. flipflap. que nem borracha.- nós vamos pra M-a-li-buuu, cara! é, nós vamos pra Malfii-bUUUU! bicho, nós vamos pra M-a-li-buuuuuu!- é isso aí, cara!- é isso aí, bicho!flípflap. ou, flapflap.
não podiam me dizer simplesmente que não tinham cigarro. precisavam me impíngir aquele lance de religião: cigarro era pra gente careta. estavam indo pra Malibu, pra algum lugar onde iam "ficar numa boa", curtindo um pouco de erva. faziam lembrar, em certo sentido, essas velhinhas paradas pelas esquinas, vendendo "0 Atalaia". essa turma toda que vai de LSD, STP, maconha, heroína, haxixe, e remédio pra tosse, sofre da comichão d`O Atalaia": você tem que estar na nossa, cara, senão sifu, tá fora. esse lance é permanente e, pelo visto, uma OBRIGAÇÃO com quem usa esses baratos. não admira que a toda hora vão em cana - não sabem ser discretos - com o que lhes dá prazer; têm que APREGOAR que estão por dentro. e, o que é pior, tendem a ligar isso com a Arte, o Sexo, com o ambiente de Protesto. o Deus do Ácido deles, Leary, lhes diz: "desistam da luta. me sigam." aí aluga um auditório aqui na cidade e cobra 5 pratas por cabeça de quem quiser ouvir ele falar. depois chega Ginsberg, junto com ele. e proclama que Bob Dylan é um grande poeta. autopropaganda dos que ganham manchetes posando de maconheíro. América.
mas mudemos de assunto, porque isso também já é outra história. este negócio, do jeito que eu conto, e do jeito que é, tem braços à beça e pouca cabeça. mas, voltando aos rapazes que estão na crista da onda, os cucas de maconha. a linguagem que usam. chocante, bicho. tem tudo a ver. o pedaço. maneiro. bacana. cafona. careta. embalo. de repente. xará. coroa. por aí, e não sei mais o quê. já ouvi essas mesmas frases - ou seja qual for o nome que se queira empregar - quando tinha 12 anos em 1932. deparar com tudo isso de novo, 25 anos depois, não contribui muito pra se simpatizar com o usuário ' ainda mais quando considera que são o que pode haver de atual. grande parte dessa gíria se deriva do pessoal que usava drogas da pesada, a turma da colher e da agulha, e também dos velhos músicos negros das orquestras de jazz. a terminologia dos que estão de fato "por dentro" já mudou, mas os pretensos modernosos, como dupla a quem pedi cigarro - esses ainda falam no estilo de 1932.
e essa história de dizer que quem fuma maconha acaba produzindo arte, é, no mínimo, duvidosa. De Quincey escreveu coisas bem razoáveis, e "O comedor de ópio", apesar de ser leitura muito agradável, tem trechos do maior tédio. e está na índole de quase todos os artistas tentar quase tudo. são curiosos, desesperados, suicidas. mas a maconha vem DEPOIS que a Arte já está ali, que o artista já existe. não é ela que produz a Arte. mas se torna, com freqüência, o pátio de recreação do artista consagrado, uma espécie de comemoração da vida, essas festinhas de embalo, e, também um campo de observação, bom pra cacete, pro artista surpreender as pessoas com a calça espiritual arriada ou, se não, tanto menos resguardadas.
na década de 1830, as festinhas de embalo e orgia sexual de Gautier eram o assunto de Paris. todo mundo também sabia que Gautier escrevia poemas nas horas vagas. hoje, as festas é que são relembradas.
saltando pra outro braço desta história: não ia gostar nem um pouco de ir em cana por uso e/ou porte de erva. seria o mesmo que ser acusado de estupro por cheirar calcinha no secador da vizinha. a erva, simplesmente, não é tão boa assim. a maior parte do efeito é causada pela predisposição mental de acreditar que a gente vai entrar numa boa. se fosse substituída por outro macete, que não fosse droga, mas tivesse o mesmo cheiro, a maioria dos usuários acabaria sentindo efeitos idênticos: "ei, xará, isto é troço FINÍSSIMO, material de primeira!"
quanto a mim, prefiro cá as minhas cervejinhas, não me meto com sujeira não por causa da polícia, mas porque esse negócio me chateia e causa pouco efeito. admito, no entanto, que o barato provocado pelo álcool e por dona "mary" seja diferente. é possível ficar alto com a erva e nem sentir; com a birita a gente, em geral, sabe muito bem o que está fazendo. eu, sou da velha guarda: gosto de saber o que faço. mas se você preferir maconha, ácido ou seringa, não tenho nada contra. o problema é seu e, se achar que assim é que deve ser, tudo bem assunto encerrado.
já basta o número de comentaristas sociais de escasso QI que existe por aí. por que deveria acrescentar o meu sarcasmo privilegiado? que não ouviu ainda essas velhas que vivem dizendo: "oh, acho simplesmente ATROZ o que essa juventude anda fazendo por aí, com todas essas drogas e sei lá mais o quê! que coisa horrível!" e aí a gente olha pra ela: sem olhos, sem dentes, sem cérebro, sem alma, sem bunda, sem boca, sem cor, sem ânimo, sem humor, sem nada, apenas um sarrafo ambulante, e a gente fica pensando o que o chá com bolinhos, a igreja e a bonita casa de esquina fizeram por ELA. e os velhos às vezes ficam bem agressivos com o que uma parte da juventude anda fazendo - "que diabo, trabalhei DURO a vida inteira!" (eles acham que isso constitui uma virtude, quando a única coisa que prova é que o sujeito não passa de um perfeito idiota) "esse pessoal quer ganhar tudo sem fazer NADA! passando o tempo todo sentado pelos cantos, estragando o corpo com drogas, esperando viver às custas da riqueza da terra!"
aí a gente olha pra ELE:que dúvida.está só com inveja. foi tapeado. perdeu os melhores anos se fodendo todo por aí. o que gostaria, mesmo, era de cair na gandaia. se pudesse recomeçar a vida. só que não pode. por isso agora quer que os outros sofram como ele sofreu.
e, de modo geral, é isso aí. o pessoal da maconha faz um bicho de sete cabeças com essa porra de erva e o público não fica atrás. e a polícia não tem mãos a medir, levando em cana e crucificando tudo quanto é maconheiro que lhes cai nas garras, e a bebida é permitida por lei até que a gente bebe demais, é preso na rua e aí então vai pra cadeia. pode se dar o que se quiser pra raça humana que ela acaba esgravatando, arranhando, vomitando e mijando em cima. se legalizarem a maconha, os e.u.a. ficarão mais cômodos, mas não muito melhores. enquanto houver tribunais, prisões, advogados e leis, serão utilizados.
pedir a eles pra legalizar a maconha equivale a pedir pra que passem manteiga nas algemas antes de colocá-las na gente. o que está te incomodando é outra coisa - por isso você recorre à maconha ou ao uísque, aos chicotes e roupas de borracha, ou músicas estridentes tocadas num volume tão alto que, porra, nem dá pra pensar. ou a hospícios, bucetas mecânicas ou 162 partidas de beisebol por temporada. ou ao vietnã, israel ou ao medo de aranhas. o amor da gente lavando a dentadura postiça amarelada na pia antes da foda.
existem respostas fundamentais a questões delicadas. nós ainda estamos brincando comas segundas porque não somos suficientemente homens nem suficientemente francos pra dizer o que precisamos. durante séculos julgou-se que talvez fosse o Cristianismo. depois de lançar os fiéis aos leões, permitimos que nos lançassem aos cachorros. pensou-se que o Comunismo pudesse ser um pouco melhor pro estômago do homem comum, mas pouco fez por sua alma. agora brincamos com drogas, supondo que há de abrir novos horizontes. o Oriente vem usando isso há mais tempo que a pólvora. descobriram que sofrem menos e morrem mais. maconhar ou não maconhar. "nós vamos pra M-a-l-i-buuu, cara! é, nós vamos pra MALLLLL-i-bUUUUU!"
com licença, vou enrolar um pouco de Bull Durham.quer dar uma tragada?



Charles Bukowski Extraído de 'Fabulário Geral do Delírio Cotidiano'

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